Canto VI

Cérbero - Círculo da gula (3) - Espírito de Ciacco

Quando acordei já estava no terceiro círculo, cercado de mais tormentos e mais atormentados que surgiam de todos os lados. Uma chuva, gélida, eterna, com neve e granizo, caía sobre a lama podre que as almas encharcavam. Cérbero, fera cruel e perversa, latia com suas três goelas para as almas submersas na lama. Ele tem uma barba negra e seis olhos vermelhos, ventre largo e garras aguçadas com as quais rasga os pecadores e os tortura. Elas berravam como cães e se contorciam na lama, tentando em vão se proteger das chicotadas da chuva dura.

Quando Cérbero nos viu, abriu suas três bocas e exibiu suas presas, rangendo e estremecendo diante de nós. Meu mestre, cauteloso, encheu suas mãos de terra e atirou nas goelas do cão danado. O monstro, guloso, não hesitou em engolir a terra, se emperrou com ela e ficou em silêncio, como um cão faminto que se ocupa com o seu osso.

Caminhamos, então, por entre as almas, pisando espectros vazios que se assemelhavam a formas humanas. Todos os espíritos jaziam deitados, se confundindo com a lama que assumia suas formas, transparentes, exceto um que se ergueu na hora em que passávamos na sua frente.

- Ó tu que és guiado por este inferno - falou - me reconhece, se puderes, pois tu foste vivo antes que eu fosse desfeito.

- A angústia - disse eu - te deforma de maneira que eu não consigo reconhecer-te. Mas dize-me quem tu és, condenado a este lugar vil e submetido a tamanha tortura.

- A tua cidade - respondeu -, tão invejosa, um dia me teve na vida serena. Teus conterrâneos me chamam Ciacco e por causa da gula sofro na chuva, como estas outras almas, condenadas por semelhante culpa.

- Ciacco - eu disse a ele -, teu estado miserável me causa grande tristeza, mas dize-me o que vai acontecer, se souberes, com os cidadãos de nossa Florença?

- Depois da paz, haverá guerra e sangue. - relatou Ciacco - O partido rústico (os Bianchi) expulsará a outra parte brutal (os Neri), mas, depois de três sóis, com a ajuda daquele que agora parece estar dos dois lados (Bonifácio VIII), voltarão ao poder, e por longos anos manterão os outros afastados, por mais que implorem ou chorem.

Quando ele terminou de narrar sua terrível profecia, perguntei-lhe:

- Onde estão Farinata e Tegghiaio, Jacopo Rusticucci, Arrigo, Mosca, e tantos outros que usaram seu gênio para o bem? Estarão eles aqui ou estarão eles no céu?

- Tu os encontrarás mais embaixo, nas valas abissais. - disse a alma - Se desceres mais, poderás vê-los todos! Mas quando voltares mais uma vez ao mundo doce, te imploro que leve minha lembrança aos que lá deixei. Não mais te digo nem te respondo.

Depois que terminou de falar, Ciacco afundou e desapareceu de repente. O mestre então falou:

- Este não mais se levantará até o dia em que soar a trompa angelical. Quando isto acontecer, a adversa potestade virá e cada alma voltará à sua tumba, retomará sua carne e sua forma humana, e ouvirá a voz que eterna soa.

E assim cruzamos aquela mistura suja de almas com chuva, aproveitando para falar um pouco da vida futura. Perguntei:

- Mestre, quanto a este tormento, ele crescerá, será o mesmo ou será atenuado após a grande sentença?

- Retorna a tua ciência na qual se ensina que o ser mais perfeito mais sente seja o bem ou a ofensa, embora essas almas malditas nunca possam um dia chegar à perfeição, para lá, mais que para cá, será sua sina.

Ao nos aproximarmos da entrada para o quarto círculo, encontramos Pluto, grande inimigo.