Notas explicativas

Canto XXVIII

28.1 Os semeadores de discórdias se dividem em três tipos: (1) criadores de cismas religiosos (Maomé, Ali), (2) instigadores de conflitos sociais (Caio Cúrio, Pier da Medicina), e (3) semeadores de desunião familiar (Bertran de Born e Mosca) [Sayers 49]. O demônio que os pune causa mutilações em partes do corpo representativas do tipo de discórdia provocada. Voltar

28.2 O profeta Maomé (570-632) foi o fundador do Islã, cujos ensinamentos proféticos, que abrangiam desde princípios políticos até sociais e religiosos, se tornaram a base da civilização islâmica e tiveram grande influência na história mundial. Nascido na cidade de Meca (Arábia), foi órfão de pai e mãe antes dos seis anos, tendo sido criado pelo seu tio. Tornou-se, como a maioria de sua tribo, um ativo comerciante e fez várias viagens à Síria onde conheceu Khadija, uma viuva cujos negócios ele passou a administrar. Ela ficou tão impressionada com a sua honestidade que o ofereceu casamento, que ele aceitou aos 25 anos. Maomé teve a oportunidade de ouvir judeus e cristãos pregarem sua religião nas feiras de Meca, e, freqüentemente se retirava para orar e meditar sobre as questões que eles levantavam. Num desses retiros, teve a visão do arcanjo Gabriel que o proclamou profeta de Deus. Inicialmente assustado com a responsabilidade que lhe foi passada, foi aos poucos assumindo sua missão profética e passou a pregar em público, tendo como primeiros seguidores sua esposa e o seu primo Ali. Ele pregava a existência de um único Deus, do juízo final e lutava pela justiça social e econômica. Maomé formalizou suas revelações no Corão, que se tornou livro sagrado. Afirmou ser o último dos profetas e que o Corão era a última das revelações. Por pregar contra as tradições tribais, Maomé foi várias vezes perseguido, tendo que se refugiar em Medina. O início do seu exílio marca o início do calendário islâmico. Em Medina, ele estabeleceu o império islâmico, implementando amplas reformas sociais, porém dando autonomia aos judeus e cristãos. [Encarta 97] Salvatore Viglio comenta sobre sua presença no inferno: "Dante pertence a uma época em que eram freqüentes os conflitos entre cristãos e muçulmanos e vivos os horrores das invasões dos grupos islâmicos sobre as nações cristãs. Embora admire a cultura árabe, não sai do clima de hostilidade religiosa, proveniente da pregação das Cruzadas. Dentro da mentalidade da idade média, considera Maomé um cristão dissidente, que, por vaidade, teria separado grande parcela da humanidade da verdadeira igreja de Cristo." [Viglio 70] Voltar

28.3 Ali (600-661): Primo de Maomé, foi um dos seus primeiros seguidores. Ali casou-se com Fátima, a única das filhas do profeta que sobrevivera à idade adulta, e assumiu o como o quarto califa do Islã em 656. Voltar

28.4 Frade Dolcino foi um reformador mal sucedido da igreja cristã. A sua seita - os Irmãos Apostólicos - pregava a volta da religião à simplicidade dos tempos dos apóstolos, o fim da propriedade privada, a comunhão dos bens e das mulheres. Sustentavam que a eucaristia não podia conter o corpo de Cristo, que a confissão dos pecados a padres humanos e pecadores era inútil, que a cruz não deveria ser adorada como símbolo divino e que o batismo com água benta não tinha valor espiritual algum, entre outras doutrinas consideradas heresia pela igreja de Roma. O papa Clemente V baniu sua seita e ordenou o fim da irmandade. Fugiram, então, Dolcino e seus seguidores para as proximidades de Novarra onde resistiram às forças do papa durante um ano, até que finalmente foram vencidos pela fome [Musa 95]. Dolcino e sua companheira, a bela Margareth de Trento foram condenados à fogueira em 1307, mas antes foram torturados cruelmente. Margareth foi queimada primeiro, num fogo lento, diante de Dolcino. Este, depois de assistir à morte de sua companheira, foi preso a uma carroça puxada por bois, que desfilou por várias ruas da cidade. Em sua volta havia vários potes de ferro cheios de brasas. Mergulhadas nas brasas estavam grandes pinças de ferro, incandescentes. Durante o desfile pela cidade, as pinças eram aplicadas em várias partes do corpo nu de Dolcino, até que toda a pele tivesse sido arrancada. No final, depois de desfilar por toda a cidade, a carcaça foi jogada sobre o que sobrou de Margareth [Longfellow 67]. Para a igreja, a doutrina de Dolcino era extremamente perigosa por causa de suas posições contrárias às determinadas por Roma e por influenciar tantos seguidores. Os culpados, quando capturados, sempre eram submetidos a torturas exemplares. No seu livro O Nome da Rosa, o escritor Umberto Eco narra um episódio onde religiosos são acusados de heresia por seguirem princípios da seita de Dolcino. Voltar

28.5 Guido del Cassero e Angioliello da Calignano eram dois cidadãos de Fano. Eles morreram por afogamento em Cattolica - cidade às margens do mar Adriático, numa região conhecida por seu mar turbulento. O afogamento não foi acidental mas o cumprimento de uma ordem de Malatestino de Rímini [Sayers 49].Voltar

28.6 O tirano cruel de um olho só é Malatestino de Rímini foi nobre guelfo da família dos Malatesta - tiranos de Rimini. Malatestino era cego de um olho. No Canto XXVII, Dante o chama de "mastim novo de Verrucchio" (o mastim velho é Malatesta). Verruchio era o nome do castelo dos Malatesta (veja nota 27.3). Voltar

28.7 Pier da Medicina era, de acordo com o estudioso Benvenuto da Imola, instigador de rixas entre as famílias de Polenta e de Malatesta (veja 28.6). [Musa 95] Suas mutilações ocorrem na garganta (que usava para mentir e espalhar intrigas), no nariz (que usava para farejar segredos alheios) e na orelha (que usava para escutar através das portas e paredes). Voltar

28.8 Caio Cúrio (Caius Cribonius Curio): foi condenado ao exílio em Rimini e por isso Pier da Medicina diz que ele deseja nunca ter visto Rimini (cidade às margens do rio Rubicon). Ele era um tribuno romano sob as ordens de Pompeu - cônsul romano que, aproveitando a ausência de Júlio César (que estava conquistando a Gália) aplicara um golpe de estado se declarando Cônsul de Roma. Em 49 a.C., César estava proibido de cruzar a fronteira entre a Gália e a república romana, marcada pelo rio Rubicon. Segundo Lucano (em Pharsalia), Cúrio dirigiu-se a César e o convenceu a atravessar o rio e avançar na direção de Roma. Essa ação iniciou a guerra civil romana (discórdia pela qual Caio é punido) que culminou com a vitória de César três meses depois. [Encarta 97], [Mauro 98] e [Musa 95] Voltar

28.9 Mosca dei Lamberti foi um nobre florentino que, ao instigar uma briga entre as famílias Buondelmonti e Amadei, levou Florença a se dividir entre guelfos e guibelinos. As famílias se desentenderam quando Buondelmonte dei Buondelmonti, que estava prometido em casamento a uma moça da família Amadei, a trocou por uma da família Donati. Quando seus parentes estavam procurando a melhor maneira de reparar o dano, Mosca disse "o que está feito, está feito", anunciando que Buondelmonte já havia sido assassinado. Por causa disso, a cidade se dividiu, tomando partidos, e daquele dia em diante, Florença passou a ser palco constante de disputas entre as facções rivais. [Sayers 49] Voltar

28.10 Bertran de Born: Famoso poeta inglês, foi um dos maiores trovadores provençais. Ele é acusado de ter semeado a discórdia entre o rei Henrique II (Henry) da Inglaterra e o seu filho, o príncipe de mesmo nome. O contrapasso de Bertran de Born é um dos mais nítidos da Comédia. O efeito do pecado foi a separação de pai e filho. O contrapasso é a separação de cabeça e tronco. Vários outros círculos do inferno apresentam contrapassos, porém nem todos são tão evidentes quanto este. Voltar