Canto XIV

Deserto incandescente - Chuva de brasas
Riacho Flegetonte

Antes ntes de partir, a minha compaixão pela alma que tanto amava a nossa Florença me levou a recolher os galhos espalhados e devolvê-los àquele tronco, que agora permanecia calado.

Continuamos a jornada até chegarmos ao lugar onde se separa o terceiro giro do segundo. O lugar era um estéril deserto de areia grossa e quente, cercado pela selva dos suicidas, assim como o rio de sangue cercava a floresta.

Eu vi vários grupos de almas nuas. Todas choravam desesperadamente. Parecia que cada grupo sofria uma pena diferente. Algumas almas permaneciam deitadas de costas no chão quente. Outras reuniam-se acocoradas em pequenos grupos. A grande maioria caminhava sem parar. Sobre todo o areão caíam brasas quentes, lentamente, como flocos de neve num dia sem vento. As brasas batiam na areia e produziam faíscas que aqueciam o chão arenoso, intensificando a dor dos que ali sofriam. Sem descanso, as almas faziam uma dança rítmica com mãos, tentando, em vão, afastar as chamas que sobre elas caíam.

Os que praticaram violência contra Deus, a natureza e a arte sofrem em um deserto incandescente e são torturados por chuvas de brasas. Ilustração de Gustave Doré (séc XIX).

- Mestre - perguntei -, quem é aquele que ali está deitado e age como se as brasas não o incomodassem?

E o vulto, percebendo que dele eu falava, respondeu gritando:

- O que um dia fui quando vivo, continuo a ser, agora, morto! Júpiter pode perder as esperanças de vingança. Nem o raio com o qual ele me atingiu no meu último dia, nem estas brasas que ele agora lança sobre mim farão com que eu lhe dê o prazer de se ver vingado!

- Ó Capâneo, já que tua soberba não diminui, o teu sofrimento só aumenta: nenhum martírio, mais que a tua própria ira, seria melhor punição ao teu orgulho! - gritou Virgílio, e depois me explicou - Ele foi rei. Um dos sete que assediaram Tebas. Pelo seu ódio, é condecorado com essas "medalhas" incandescentes que enfeitam seu peito. Agora me acompanha e tem cuidado para não pisar na areia quente, seguindo sempre por este bosque ao lado.

Chegamos a um pequeno riacho, de águas tão vermelhas que me deixaram impressionado. O leito e as margens do rio eram feitas de pedra, e as bolhas liberavam um vapor que extinguiam as chamas que caíam acima e nas proximidades do riacho. Imaginei, portanto, que aquele deveria ser o nosso caminho.

- Entre todas as coisas que te mostrei, não viste nada ainda tão notável quanto este riacho que extingue as chamas que caem sobre ele. - falou o mestre, e eu pedi que ele falasse mais sobre a origem do riacho.

- No meio do mar se encontra um país gasto, que se chama Creta. - explicou Virgilio - Lá existe uma montanha chamada Ida, que, antes fértil e cheia de vida, hoje permanece deserta como coisa velha. No centro da montanha encontra-se um grande velho, que tem suas costas voltadas para Damiata, e seu rosto virado para Roma, que lhe serve de espelho. Sua cabeça é feita do mais puro ouro. De pura prata são seus braços e o peito. É de cobre dali até onde começam as pernas. O resto é todo de ferro exceto o seu pé direito que é de argila, sobre o qual apoia a maior parte do seu peso. Todas as suas partes, exceto a de ouro, estão podres, rachadas por uma fissura por onde fluem lágrimas que descem até os seus pés, onde elas se unem e cavam uma gruta. Pelas rochas penetram e aqui deságuam, formando o Aqueronte, o Estige e o Flegetonte que, no final, formam o Cócito que ainda veremos adiante.

- Se este riacho ao nosso lado tem sua origem no nosso mundo, porque só agora o vimos? - perguntei.

- Tu sabes que este lugar é redondo - respondeu - e que nós, virando sempre à esquerda e descendo, não demos ainda uma volta completa; muito ainda veremos adiante, então, não fiques surpreso ao encontrar algo que não vistes ainda.

- Onde, mestre, encontraremos o rio Flegetonte e o Letes, que não foi por ti mencionado?

- O Flegetonte - respondeu -, é a fonte deste riacho que agora vês saindo da floresta. É aquele mesmo rio de sangue fervente que atravessamos com o centauro. O Letes tu ainda verás, mas fora deste mundo. É lá que se banha a alma penitente que, arrependida, da sua culpa se purifica.

Depois ele me chamou:

- Vem. Está na hora de sairmos deste bosque. Vem pela margem de pedra deste riacho, pois sobre ela o vapor apaga as chamas.