Canto XVII

Visões da Ira - Anjo da Mansidão - Subida para a quarta cornija - Explicação da justiça do Purgatório

Recorda, leitor, se alguma vez estiveste em meio a uma névoa densa na hora em que as brumas começam a se dissolver, como a esfera pálida do Sol, aos poucos, se torna visível. Poderás assim formar a imagem exata do momento em que voltei a encontrar o Sol, que naquela hora estava a se por.

Mas, quando deixamos aquela nuvem de fumaça, meus sentidos outra vez se perderam numa visão. A imagem mostrava Procne, que fora transformada em andorinha, por causa de sua ira cruel. Depois surgiu, na minha imaginação, um homem enforcado e furioso. Em sua volta estava o grande Assuero, sua esposa Ester e o justo Mordecai. Mas essa imagem também se esvaiu como uma bolha estourada, e veio outra, onde uma jovem chorava, dizendo:

- Ó rainha, por que quisesse que a ira te reduzisse a nada? Tiraste tua vida para não perder Lavínia mas agora me perdeste, pois eu sou ela que choro pela tua ruína.

Pouco depois, eu fui acordado por uma luz brilhante. Olhando em volta para saber de onde vinha, ouvi a voz:

- Aqui é a subida.

- Este é um divino espírito - disse-me Virgílio -, oculto na própria luz. Ele veio mostrar-nos o caminho. Aquele que espera que se peça quando vê que é preciso, mostra que não está mesmo disposto. Vamos, então, obedecer à sua chamada e subir antes que o dia acabe, pois se não o fizermos, só poderemos continuar quando o Sol retornar.

Nós dois então começamos a subida das escadas. Quando eu pus o pé no primeiro degrau, senti uma asa mover-se na minha frente e dizer: "Bem-aventurados são os mansos, que não conhecem a ira maligna."

Sobre nós, estavam os últimos raios do Sol. A noite se aproximava enquanto que as estrelas, aos poucos, iam surgindo.

- Ó forças minhas, por que razão te esvais? - dizia eu a mim mesmo ao sentir que as forças fugiam das minhas pernas. Tínhamos acabado de chegar ao último batente. Se houvesse mais batentes, não poderíamos subir nem um degrau, pois não tínhamos mais forças. Eu esperei um pouco tentando ouvir algo neste novo terraço, mas depois voltei-me ao mestre, e perguntei:

- Ó doce pai, dize-me, qual a ofensa que é purgada dos pecadores desta cornija?

- O amor ao bem - respondeu - que eles tiveram sem a força devida, aqui se restaura. É aqui que trabalha o preguiçoso. Mas, para melhor entenderes, presta atenção ao que vou te explicar, para que tires o melhor proveito deste nosso atraso.

Ele então começou seu discurso:

- Jamais existiram criador nem criaturas sem amor natural ou sem o amor racional que o ânimo busca. O natural nunca erra. O outro poderá errar, ao escolher mal o objeto de seu amor, por excesso, ou por falta de vigor. O amor que se fixa no bem supremo, ou nos bens secundários com moderação, não pode ser causa de mal. Mas quando pende ao mal ou busca o amor com mais ou menos força do que se deve, emprega a sua criação contra o criador. E assim, poderás entender como o amor é ao mesmo tempo a semente de toda virtude e de todo ato que merece punição. Como o amor nunca pode querer mal a si próprio, nem pode querer mal àquele que o criou, o mal que se ama é o mal a seu próximo, e este se divide em três modos: os primeiros só admitem a própria glória, mesmo que isto signifique a ruína do próximo (orgulhosos); depois há os que preocupam-se com a possibilidade do outro crescer e acumular mais fama e poder que eles (invejosos); finalmente, existem aqueles que, por injúria sofrida, explodem em ira, e só pensam em revidar o mal causado (iracundos). Esses três tipos de amor pervertido vistes sendo purgados lá embaixo. Agora, veremos os que buscam o bem, mas de modo faltoso. Cada um imagina vagamente, algum bem que deseja, e se deixa levar pelo desejo de encontrá-lo. Se o amor que vos impele a essa meta é lento e preguiçoso, é nesta cornija que vós o expiarás. Há outro bem que não traz felicidade, pois não vem da boa essência que é fruto e raiz de todo o bem verdadeiro. O amor que perde ao tender a esse bem em excesso é purgado acima, nos próximos três terraços. Não falarei deles agora. Tu os descobrirás quando lá chegarmos.