Canto XVI

A fumaça - Cornija dos iracundos
Espírito de Marco Lombardo

Nem as trevas do Inferno, nem as noites mais escuras, cobriram meu rosto com um véu tão grosso, escuro e áspero, como aquela fumaça que ora nos envolvia. Não era possível suportar aqueles gases de olhos abertos, por isso o mestre veio em meu resgate oferecendo o seu ombro como guia. E assim, como cego guiado, eu atravessei o ar sórdido e amargo, ouvindo o meu senhor que dizia:

-Toma cuidado para não se perder de mim neste lugar!

Eu podia ouvir vozes que pareciam todas cantar ao cordeiro de Deus que leva nossos pecados. Com o Agnus Dei começavam todas as suas preces, a uma só voz, em uma atmosfera de perfeita harmonia.

- Mestre - perguntei - são de espíritos essas vozes que eu ouço?

- Tu deduziste bem - respondeu Virgílio -. Aqui eles soltam os nós de sua ira.

- E quem és tu que fendes a nossa fumaça e falas como se o vosso tempo ainda se medisse nos calendários? - ouvi alguém falar. O mestre então me disse:

- Responde e pergunta se é por este caminho que se chega às escadas.

- Ó criatura - falei - que aguardas o dia em que voltarás para quem te fez, se vieres comigo, ouvirás maravilhas e terás tuas dúvidas esclarecidas.

- Irei até onde for permitido - respondeu o espírito - e mesmo que tu não possas me ver e nem eu a ti, pelo menos podemos ouvir nossas palavras.

- Eu ainda estou vivo - expliquei - e cheguei aqui depois de passar pelos lamentos do Inferno, que deixei para trás. E se Deus me acolheu na sua graça para que eu subisse à sua corte antes do tempo, dize-me, por favor, quem fostes e dize-me também, se o caminho que estamos seguindo é o que levará ao pé da escada.

- Eu fui lombardo e Marco era o meu nome - disse ele - . O caminho em que estás é sim o caminho das escadas. Peço que ores por mim quando chegares ao fim do teu trajeto.

Marco Lombardo na cornija dos iracundos. Ilustração de Gustave Doré (século XIX).

- Por minha fé - respondi - vou me empenhar em fazer o que me pedes. Mas tenho uma dúvida, que talvez possas tu me esclarecer. O mundo anda deserto de virtudes e infestado de maldades. Alguns dizem que tudo é vontade dos céus. Outros acham que é culpa dos homens. Conheces a verdadeira causa de tudo e sua origem? Dize-me, se souberes, para que eu possa revelar a verdade aos outros.

- Irmão - começou, com um suspiro de pesar - o teu mundo é cego. Vós que viveis atribuís tudo à influência dos astros, como se tudo fosse movido por eles e só por eles. Se assim fosse, não haveria livre arbítrio nem haveria sentido no júbilo ou no luto, pois nada seria evitável. O céu inicia vossos movimentos, mas não todos. Porém mesmo que assim fosse, ainda seríamos responsáveis, pois nos é dada a luz para distinguir o bem do mal. Natureza melhor e mais poderosa vos rege: a que é criada por vossas mentes, e que o céu não controla. Logo, se o mundo hoje perdeu o rumo, buscai a causa em vós e não nos astros, pois é em vós que ela está! Agora te explicarei a causa de toda esta falta de rumo. A jovem alma, surgida das mãos do criador, nasce pura e inocente, acreditando em tudo e em todos. Convém que haja portanto leis a serem seguidas e um rei capaz de pelo menos discernir as torres da cidade verdadeira. As leis estão aí mas quem as rege? Ninguém! O pastor encarregado de vos guiar corrompe a lei e vos arrasta para o abismo. Roma tinha dois sóis. Um mostrava a estrada de Deus, o outro mostrava a estrada do mundo. Mas um Sol apagou o outro e agora a igreja se uniu à espada, e desde então, um não teme mais o outro. Nas terras do Pó e do Adige se encontrava cortesia e virtude antes dos tempos de Frederico. Só restaram três velhos justos: Conrado da Palazzo, o bom Gherardo e Guido da Castello. A igreja de Roma que fundiu os dois poderes, agora afunda na lama, levando junto seus líderes e toda a sua carga.

- Ó Marco - disse eu - são bons teus argumentos. Agora entendo porque os filhos de Levi foram também excluídos da herança. Mas quem é esse tal de Gherardo do qual falaste agora há pouco?

- Mas como? Não conheces o bom Gherardo? - perguntou ele, surpreso - Eu não sei seu sobrenome, apenas que tem uma filha chamada Gaia. Que Deus esteja convosco, pois agora eu terei que ir. Vê os raios de luz que clareiam a fumaça. É o anjo que se aproxima e devo partir antes que ele me veja.

Ele se foi, e não quis mais me ouvir.