Canto XXXIII

Espírito do Conde Ugolino - Ptoloméia
Espírito do Frei Alberigo

O pecador virou-se, afastou a boca daquela terrível refeição, limpou seus lábios nos cabelos do crânio que devorava, e falou:

- Queres que eu me recorde de um terrível pesadelo. Mas, se o que eu disser puder trazer uma infâmia maior a este traidor de quem arranco as peles, tu ouvirás o meu relato e o meu pranto. - e prosseguiu - Eu não sei o teu nome, nem de onde és, mas pareces florentino. Tu deves saber que eu fui o conde Ugolino, e que este outro é o arcebispo Ruggieri. Por causa de sua perversa astúcia, por confiar neste desgraçado eu fui traído, detido e morto, como vês. Mas antes saibas da forma cruel como fui morto para que possas julgar-me. Se o pensamento do que agora vou dizer não te tocar o coração, como tu és cruel! E, se não chorares, será que alguma vez choras? Eu fui preso com meus quatro filhos em uma cela para morrer de fome. Todos os dias meus filhos choramingavam e me pediam pão, e o pão nunca chegava. Eu ouvi o portão da torre lá embaixo ser lacrado com pregos e então olhei para as faces dos meus, e não lhes disse nada. Eu não chorei. Me transformei em pedra por dentro. Eles choravam e meu pequeno Anselminho falou "O que tens, meu pai, o que é que há?" Não respondi e nem uma só lágrima caiu durante todo o dia, nem durante toda a noite seguinte. Quando um raio de sol clareou aquele cárcere doloroso por um instante, me vi refletido nos quatro rostos, e mordi minhas mãos de desespero. E eles, pensando que eu mordia minhas mãos de fome, me disseram: "Pai, nós sofreremos menos se comeres de nós. Tu nos vestisse com estas míseras carnes e tu podes tomá-las de volta!" Fiquei quieto para não me tornar mais triste. Durante esse dia, e o outro, ninguém falou nada. No quarto dia, Gaddo lamentou aos meus pés "Pai meu, por que não me ajudas?" e depois morreu. Depois eu os vi morrendo um a um, do quinto ao sexto dia, os outros três. Por mais dois dias, já cego, chorei sobre seus corpos mortos, até que no oitavo dia a morte me levou.

Quando terminou de falar, virou seu rosto para a sua vítima e voltou a atacar aquele crânio com os dentes, como um cão que não solta o seu osso. Ai Pisa, que vergonha és para a nossa Itália! Se o conde Ugolino era culpado de ter traído um dos castelos teus, nada justificava que seus filhos fossem torturados.

Seguimos adiante até o lugar onde o gelo maltrata de forma mais dura os pecadores. Com os rostos virados para cima, nem nos olhos a sua angustia encontra alívio, pois lá se forma uma barreira de gelo no primeiro choro, quando as lágrimas congelam e preenchem toda a cava do olho.

Embora o frio tivesse afastado toda a sensação do meu rosto, comecei a sentir uma leve brisa e perguntei ao mestre:

- Mestre, que vento é este? Pensei que vento algum poderia chegar a estas profundidades.

- Logo saberás - respondeu Virgílio - pois teus próprios olhos te darão a resposta.

Enquanto conversávamos, um dos desgraçados submersos no gelo nos ouviu e gritou:

- Ó réus tão cruéis que para vós foi imposta a pior das penas, tirai este gelo de meus olhos, e me livrai da dor que impregna meu coração, até que novas lágrimas selem meus olhos outra vez.

- Eu prometo te ajudar, mas diga primeiro quem és. - falei. - Se eu não cumprir o que prometi, que possa eu então chegar ao fundo desta geleira.

- Sou frei Alberigo. - disse o espírito. - aquele das frutas do mau horto, e aqui recebo tâmara por figo.

- Oh! - exclamei. - Então tu já estás morto?

- Pode até ser que meu corpo ainda esteja lá em cima, - respondeu - mas nenhuma ligação tenho mais com ele. Quando uma alma comete traição tão estúpida quanto a minha, o seu corpo lá na Terra é imediatamente possuído por um demônio que o governa até que chegue o seu dia. A alma que antes habitava o corpo cai aqui na Ptoloméia. Mas tu que chegas agora deves também conhecer esse aí do lado. Ele é ser Branca d'Oria e está aqui neste gelo há muito mais tempo do que eu.

- Creio que me enganas - disse eu -, pois que eu saiba, Branca d'Oria ainda vive. Ele come e bebe, dorme e veste roupas!

- É ele sim! - insistiu o frei Alberigo - Antes de Michel Zanche, sua vítima, chegar ao fosso guardado pelos Malebranche, ele já congelava neste lago. O seu corpo foi, na ocasião, recebido por um diabo, que provavelmente ainda o possui. Mas já falei o suficiente. Estende logo tua mão e livra-me os olhos!

Ele pediu, mas eu não obedeci. E foi cortesia minha ser-lhe vilão.

Ah genoveses! Vós que sois avessos a toda lei e adeptos da corrupção; por que o mundo não se livra de uma vez de vossa gente? Pois, fazendo companhia ao pior espírito da Romanha, vi um dos vossos, cujas obras eram tais que sua alma já congela no Cócito, mas seu corpo parece vivo e ainda caminha entre vós.