Canto V

Segundo terraço - Arrependidos na hora da morte
Espíritos de Jácopo del Cassero, Buonconte e Pia

Eu já me afastava daquelas sombras, acompanhando os passos do meu guia, quando uma delas, me apontando o dedo, gritou:

- Vejam! Ele faz sombra! Ele interrompe a luz do Sol como se fosse vivo!

Ouvindo essas palavras, olhei para trás e vi as almas, espantadas com a minha forma humana e minha sombra.

- Por que tua mente se dispersa tanto? - reclamou o mestre. - Te interessa o que essas almas murmuram? Me acompanha e deixa que elas falem sozinhas! Aquele que deixa que seus pensamentos sejam interrompidos por qualquer coisa, perderá a vista de sua verdadeira meta, e terá sua mente enfraquecida.

- Eu já vou! - respondi. Que outra resposta poderia eu ter dado? Meu rosto, enrubescido pela vergonha já dizia tudo.

Enquanto isso, pela encosta adiante, um outro grupo de almas passava cantando o Miserere verso a verso. Quando viram que a luz não atravessava a minha forma como deveria, o grupo mudou seu canto para um "Ohhh" longo e rouco.

Vale dos excomungados. Ilustração de Gustave Doré (século XIX).

Depois vieram duas almas, correndo, e perguntaram:

- Quem sois vós? - e a Virgílio - Por que a luz não o atravessa?

- Podeis retornar e dizer aos vossos que o corpo deste aqui é de carne verdadeira - respondeu o mestre -. Se a visão de sua sombra, presumo, os confundiu, agora o sabem, e lhes será conveniente honrá-lo.

Logo que o mestre terminou de falar, as duas almas correram de volta ao seu grupo.

- Essa gente toda agora virá te fazer perguntas. - comentou Virgílio - Presta atenção no que elas te disserem, mas não pares; continues a caminhar enquanto escutas.

- Ó alma que segues para a tua alegria - gritou um deles -, pára, por um momento, e olha se conheces algum de nós. Ah! Por que vais? Por que não paras? Olha-nos! Cada um de nós encontrou a morte violenta e foi pecador até o último instante, quando a luz do céu nos iluminou com seu perdão.

- Eu vos vejo mas não reconheço ninguém - respondi -. Se houver alguma coisa que eu possa fazer para agradar-vos, dizei, que eu farei.

- Se algum dia viajares entre a Romanha e o reino de Charles de Anjou, - falou o primeiro - pede aos povos de Fano que façam orações por mim, para que eu possa logo começar a purgar minha culpa. Eu fui daquelas terras, mas morri nas de Antenor, por ordem de Azzo de Este, que me odiava mais que o seu direito admitiria. Eles me surpreenderam em Oriaco, atolei nos juncos e vi surgir no brejo, um lago de sangue das minhas veias.

Depois que ele se calou, outra alma se aproximou, e falou:

- Que o teu desejo, que o traz ao alto monte, seja cumprido, mas, tende piedade e me ajuda também. Eu fui de Montefeltro, eu sou Buonconte. Ninguém mais quer saber de mim, nem mesmo a minha Giovanna, e por isso ando cabisbaixo entre os outros daqui.

- Buonconte, o que aconteceu contigo em Campaldino? - perguntei - Onde foi parar o teu corpo que nunca foi encontrado?

- Oh, tu saberás! - respondeu ele - Ao pé do Casentino corre um rio chamado Arquiano, que nasce nos Apeninos. Lá onde ele muda de nome eu cambaleava a pé, com a garganta perfurada, cobrindo o chão de sangue. Lá eu perdi a visão e a fala acabou quando pronunciei o nome de Maria. Lá eu caí, e só restou minha carne vazia. Digo a verdade e tu a anuncia: o anjo de Deus me levou, mas o do Inferno reclamou, insatisfeito: "Ó tu, do céu, por que me roubas? Tu levas este para o céu por causa uma lagrimazinha à toa? Ah, mas deixa que eu sei o que fazer com o corpo!" Então o demônio uniu o mal ao intelecto, movendo o fumo e o vento, pelo dom que a natureza lhe concede. Cobriu o vale de névoa tão escura que logo a chuva caiu numa tempestade. A água seguiu pelos fossos na direção do grande rio e formou uma enxurrada tão violenta que, ao chegar ao Arquiano, arrastou o meu corpo gelado, lançando-o para dentro do Arno; desfez a cruz que meus braços faziam sobre o peito, e jogou-me no fundo do seu leito.

- Por favor - pediu outra alma, quando Buonconte terminou - quando voltares ao mundo, lembra-te de mim! Eu sou Pia. Nasci em Siena, morri em Maremma, como bem sabe aquele que me cativou e desposou.