Canto IV

Subida ao segundo terraço - Almas dos que se arrependeram tardiamente por preguiça - Belacqua

Quando algum dos nossos sentidos se entrega à intensidade do prazer ou da dor, naquele momento, ele toma toda a atenção da alma, que ignora quaisquer outros poderes. Isto mostra o engano de quem afirma que mais de uma alma habita em nossos corpos. Portanto, quando se ouve ou se vê alguma coisa, que captura a atenção total da alma, o tempo passa sem que percebamos. Disso tive experiência verdadeira enquanto escutava aquele espírito, pois sem que eu percebesse, o Sol subira bem cinqüenta graus de seu caminho até que o grupo finalmente parou, e gritou a uma só voz:

- É aqui o lugar por onde podereis subir.

O caminho era uma fenda estreita e íngreme. Entre as paredes da passagem o mestre foi na frente e eu o segui atrás. A subida era quase vertical de forma que era preciso usar os pés e as mãos para escalar o precipício. Quando finalmente chegamos ao topo, deixando a fenda, encontramos uma ladeira aberta.

- Mestre - perguntei -, e agora? O que faremos?

- Não mude teu passo - respondeu -, mas segue-me. Vamos continuar a subir a montanha até que encontremos um guia disposto a nos indicar o caminho.

O pico estava tão alto que a minha vista não o alcançava. A encosta continuava íngreme. Me parecia ter mais de quarenta e cinco graus de inclinação. Isto só aumentava o meu cansaço, e pedi:

- Ó doce pai, volta-te e olha para mim, pois se tu continuares nesse passo, eu certamente ficarei para trás.

- Meu filho - disse Virgílio - é preciso que faças mais um pequeno esforço. Precisamos subir só mais um pouco até ali. - e apontou para um patamar não muito longe, rodeando o monte.

Suas palavras me incentivaram e eu me esforcei, rastejando e subindo, até finalmente por os pés naquele terraço. Lá sentamos, voltados para o oriente, e olhamos para baixo para ver o caminho que ficou para trás. Procurei o Sol, e me espantei ao vê-lo à nossa esquerda. O poeta, percebendo minha admiração, decidiu falar:

- Se fosse verão (no hemisfério norte), tu verias o Sol mais próximo ainda do norte. Se ainda não compreendes como o Sol pode estar daquele lado, imagina este monte, sobre a Terra, em oposição a Jerusalém, de forma que ambos tenham o mesmo horizonte, porém hemisférios distintos. Se o Sol percorre um mesmo caminho circular, quando passa por Jerusalém de um lado terá que, necessariamente, quando passar por aqui estar do lado oposto.

- Certo, mestre meu - disse-lhe -, agora eu finalmente entendi esta questão dos círculos móveis do céu. O Equador celeste, que os hebreus vêem ao sul, está para nós ao norte, na mesma distância. Mas deixa por favor que eu te pergunte, quanto mais teremos que escalar até chegar ao pico que eu sequer consigo ver?

- Esta montanha é tal - respondeu - que o início de sua escalada é muito difícil. Mas, à medida em que formos subindo, o esforço exigido será cada vez menor, até que chegaremos a um ponto onde nenhum esforço será necessário para subir mais. Quando estivermos lá, teremos chegado ao seu pico.

Ele mal havia acabado de falar quando, junto a nós, soou outra voz, que disse, ironicamente:

- Talvez antes disso terás que te sentar.

Ambos viramos o olhar na direção da voz, que vinha de uma grande pedra. Abaixo dela estavam várias pessoas espreguiçadas sob sua sombra. Uma delas, parecendo a mais cansada, abraçava os joelhos deixando a cabeça cair entre as pernas.

- Mestre olha só aquele ali - apontei -. Parece até o irmão da própria preguiça.

Ouvindo o que eu falei, movendo apenas a cabeça bem devagar e levantando o olhar pela coxa, ele disse:

- Ora, então sobe tu, já que és tão valente!

Depois disso eu já sabia quem era. Embora cansado, consegui me arrastar até ele que, ao me ver, levantou o rosto de leve, dizendo:

- E então, conseguiste entender porque o Sol caminha pelo lado esquerdo?

Seu jeito preguiçoso e seu sarcasmo me fizeram sorrir, e não tive dúvidas que era ele.

- Belacqua - eu disse -, que bom te ver aqui. Não preciso mais me preocupar com teu destino. Mas o que fazes aqui sentado? Estás esperando um guia ou ainda estás tomado pelo vício antigo?

- Ó irmão - murmurou ele -, que adianta subir? Não posso cumprir minha pena pois o anjo que guarda a porta me nega passagem. Antes que eu possa iniciar minha purgação, os céus devem girar tantas vezes quanto giraram enquanto eu vivia, pois deixei para me arrepender no último instante. Permaneço, portanto, aqui, a menos que meu tempo seja reduzido por orações de um coração que vive em estado de graça.

Enquanto eu falava o poeta já começava a subir novamente.

- Vamos - chamou -, pois o Sol já chegou ao meio do céu. A esta hora, a noite já avança sobre Marrocos.