Canto XXVI

Exemplos de luxúria - Guido Gunicelli
Arnaldo Daniel

Continuamos pela beira estreita, ainda em fila única. O mestre, sempre atento, não parava de me lembrar para tomar cuidado. Nessa hora o Sol, brilhando à minha direita, projetava minha sombra sobre o fogo que tornava as chamas mais escuras. O efeito logo chamou a atenção das almas, até que uma delas comentou:

- Olha só! Esse aí não parece ter um corpo como o nosso!

Vários outros espíritos depois se aproximaram, mas todos tiveram o cuidado de não sair do fogo. Um deles enfim falou:

- Ó tu que segues atrás desses outros dois, me responde! Dize-me como é que é possível bloqueares o Sol como se fosses parede, como se ainda não tivesses passado pela morte.

Eu estava prestes a responder, mas antes que eu pudesse falar, um outro grupo de almas que surgia das chamas me desviou a atenção. O grupo corria em sentido contrário. Quando os dois grupos se encontraram, todos se abraçaram e se beijaram em confraternização. Isto durou muito pouco pois logo já estavam se despedindo com gritos. Os que chegavam gritaram "Sodoma e Gomorra!", e os outros "Na vaca entra Pasifae, para que o touro corra à sua luxúria!" Depois da separação, cada grupo voltou a entoar seus hinos. Voltaram às bordas do fogo aqueles que antes tinham me chamado, e eu, que já sabia o que queriam, fui logo respondendo:

- Ó almas seguras de ter, algum dia, a paz eterna. Eu não deixei o meu corpo lá na Terra. Estou aqui vivo, em carne e osso. Mas dizei-me, para que eu possa registrar em meus escritos, quem sóis vós e também, quem foram aqueles que há pouco passaram por vós, em sentido contrário?

Estavam todos imóveis, como matutos espantados ao chegar em uma cidade grande pela primeira vez. Quando finalmente se recuperaram da surpresa, a mesma alma que antes me indagou começou:

- Bem-aventurado és tu que, de nossas margens, pode ganhar experiência para morrer melhor. Aquele grupo que veio ao nosso encontro é culpado daquele mesmo pecado que o exército triunfante de César sugeriu ter seduzido seu líder, ao chamá-lo de "Rainha". Por isso gritavam "Sodoma." Eles usam sua vergonha para aumentar as chamas. O nosso pecado foi heterossexual, porém em desacordo com os costumes humanos, nos deixamos levar pelos desejos animais. Então, quando passamos pelo outro grupo, lembramos o nome vergonhoso daquela que se entregou ao touro, na vaca de madeira. Eu não teria tempo nem conhecimento para dizer-te o nome de todos nós que aqui estamos, mas posso apresentar-me. Sou Guido Guinizelli. Estou aqui desde cedo, pois me arrependi bem antes de morrer.

Grande foi minha felicidade ao saber estar diante daquele que foi um pai para mim na poesia, e pai de todos os meus mestres que escreveram rimas de amor usando graça e ternura. Eu fiquei a observá-lo, sem, no entanto, me aproximar demais do fogo. Depois falei e expus o meu desejo de servi-lo no que ele desejasse.

- Não esquecerei as tuas palavras - disse ele - mas dize-me por que tanto me admiras em tuas palavras e versos?

- Os teus belos versos- respondi -, enquanto durar este novo estilo, tornarão preciosa até a tinta que usaste.

- Irmão - disse ele - posso mostrar-te um artesão de sua língua pátria ainda melhor do que eu - e apontou para outro espírito mais à frente -. Ele foi melhor que todos! Julgam o limusino melhor por causa da fama, mas não pela verdade. Assim também Guittone foi julgado no passado, injustamente. Agora voltando a ti, que tens o privilégio de poder subir ao Céu, não esqueças de rezar um padre-nosso por mim quando chegares lá.

Depois de falar ele sumiu dentro daquelas chamas e eu me adiantei até a alma que ele havia me apontado antes. Eu o saudei e ele respondeu, na sua língua pátria:

- Eu sou Arnaldo, aqui cantando pelas minhas lágrimas, lamentando minhas folias do passado e alegre pelos felizes dias que me esperam. Eu vos peço, por aquele que vos guia ao cume desta escada, que de tempos em tempos, recordai a minha dor.

E depois se escondeu naquele fogo que purifica.