Canto XXI

Espírito de Estácio

A sede de conhecimento me atormentava. Aquela estrada coberta de almas deitadas obstruía minha pressa, mas isto não era suficiente para reduzir o meu passo. E eis que de repente uma sombra nos surpreendeu. Ela veio de trás. Como olhávamos para o chão, tomando cuidado para não pisar nas almas penitentes, só percebemos sua presença quando ouvimos:

- Irmãos, que a paz de Deus esteja convosco.

Quando ele falou, nós paramos e olhamos para trás. Virgílio então respondeu às suas palavras, dizendo:

- Que a corte sagrada que me baniu ao eterno exílio te acolha em paz no concílio divino.

- Como? - disse ele, nos seguindo -. Se vós sois gente que Deus não recebe, quem vos guiou pelas escadas?

- Se observares - começou o mestre - as marcas que o anjo marcou nele, verás que ele deve seguir para o reino dos bons. Mas como ainda não chegou o seu dia, sua alma não poderia subir sozinha, pois ela não vê o que nossos olhos vêem. Então eu fui trazido do maior círculo do Inferno para guiá-lo até onde meus conhecimentos permitirem. Mas dize-me, se souberes, por que o monte tremeu agora há pouco; e qual o porquê daquele alegre clamor que acompanhou o abalo?

A pergunta do mestre atingiu em cheio o cerne do meu desejo, e só pelo anseio, minha sede já estava mais aliviada.

- As leis sagradas desta montanha - respondeu a sombra - não permitem que nada ocorra, que esteja fora de sua regularidade. Livre é este lugar de qualquer alteração a não ser que venha do céu. Então não há chuva, granizo, neve ou orvalho acima dos três degraus da primeira escada. Podem ocorrer terremotos na Terra, mas aqui eles nunca chegam. Aqui, a montanha só treme quando alguma alma se sente pura o suficiente para começar a subir, e depois, ouve-se aquele coro. A vontade de subir é a prova da pureza alcançada. E eu, que por mais de quinhentos anos permaneci aqui deitado, agora tive vontade de me levantar. Foi por isso que sentistes o tremor e ouvistes todos os habitantes do monte louvar a Deus.

Assim nos disse, e assim ele saciou a minha sede. Depois o sábio mestre perguntou:

- Agora, se te agradar, gostaria de saber quem foste tu, e saber por tuas palavras, por que passaste tanto tempo aqui.

- Nos tempos do bom Tito que, ajudado pelo supremo Rei, vingou o sangue por Judas vendido, eu já tinha o nome que ainda persiste - disse a alma -. Fama eu tinha, mas ainda não tinha fé. Meu nome é Estácio, e em Roma, assim ainda me chamam. Cantei das glórias de Tebas e depois as do grande Aquiles, mas este último não terminei. A faísca que acendeu o meu ardor poético veio daquela chama sagrada que já iluminou mais de mil poetas. É da Eneida que eu falo. Ela foi a mãe da minha poesia. Para ter tido a oportunidade de viver em outro tempo, no tempo de Virgílio, eu aceitaria passar mais um ano de sofrimento neste monte.

Essas palavras fizeram com que Virgílio olhasse para mim com um olhar que dizia "Cala!" Mas como nem tudo o que se quer se pode, não pude conter um breve sorriso que não passou despercebido. Estácio calou-se. Depois falou:

- Que teu esforço possa te levar ao céu, mas dize-me, por que há pouco um lampejo de riso apareceu em tua face?

A pergunta me pegou desprevenido. Um me pede para não falar. O outro pede que eu fale. E agora? Suspirei, mas o mestre logo veio em meu auxílio:

- Não tenhas medo - disse ele -. Dize a ele o que ele deseja saber.

- Se te espantasse com meu sorriso - comecei - vou agora te dar motivo para espanto ainda maior. Este, que guia meu olhar para o alto, é o poeta Virgílio de quem colheste o poder de cantar as aventuras dos homens e dos deuses.

Antes que eu terminasse de falar, Estácio já se inclinava para abraçar os pés do mestre quando este lhe disse:

- Irmão, não faças isto. Tu és sombra e eu sou sombra.

E ele, se erguendo, respondeu:

- Agora compreendes quanto amor eu tenho por ti, quando eu me esqueço da nossa condição vazia tratando sombras como se fossem coisas materiais.