Canto XX

Espírito de Hugo Capeta - O monte treme

Para satisfazê-lo, eu, insatisfeito, me levantei sem ter feito as perguntas que queria e me retirei, como ele havia pedido. Meu guia decidiu seguir o caminho junto à encosta, por onde havia espaço, pois as lágrimas vertidas por aquela massa inundavam todo o terraço até perto da beira.

Maldita sejas tu, ó loba antiga, cujo apetite insaciável fez mais vítimas que qualquer outra besta! Quando, ó céus, virá aquele que a expulsará do mundo?

Nós andávamos em passos lentos e escassos e eu me mantinha atento aos espíritos que continuavam a chorar, se lamentando. Assim, por acaso eu ouvi alguém chamar à nossa frente:

- Doce Maria! Foste tão pobre quanto pode-se ver pelo lugar onde tivesse o teu filho - E depois: - Ó bom Fabrício, tu preferiste a pobreza e virtude à riqueza e vício!

Essas palavras me foram tão agradáveis que eu me adiantei para indagar a identidade do espírito que as havia pronunciado. Ele continuava a falar agora do presente de Nicolau às três donzelas, que assim puderam honrar sua juventude.

- Ó alma que falas de tanto bem - disse eu - dize-me quem foste e por que somente tu revelas tais exemplos de louvor. Tua resposta não ficará sem recompensa, se eu voltar ao mundo para cumprir o curto caminho que me resta.

- Eu te direi - respondeu ele - mas não pelo conforto que eu espere do mundo de lá, mas porque tanta graça em ti reluz antes de morto. Eu fui raiz da maligna planta que escurece toda a terra cristã, mas se Douai, Lille, Ghent e Bruges pudessem, a vingança seria delas, e que seja, se Deus quiser. Na Terra eu me chamava Hugo Capet. Sou o patriarca de todos os Felipes e Luíses que ultimamente têm regido a França. Enquanto não haviam tomado o reino provençal, não fizeram tanto mal, mas depois levaram Ponthieu, Normandia e Gasconha. Carlos veio à Itália, sacrificou Conradino e mandou Tomás para o céu. Eu vejo um tempo, num futuro não muito distante, onde um outro Carlos virá da França, e o mundo conhecerá melhor a ele e a sua laia. Ele virá sem armas mas com a lança de Judas arrebentará a pança de Florença. O terceiro Carlos, que uma vez foi preso em seu navio, vejo vender sua própria filha como fazem os corsários com suas escravas. Ó avareza, que mais podes causar ao meu sangue após tê-lo levado à desprezar até a própria carne? Vejo ainda, no futuro, a flor de lis entrar em Alagna e aprisionar o vigário de Cristo; vejo-o entre ladrões receber o vinagre e por fim ser morto. E esse novo Pilatos tão cruel, ainda insatisfeito, perseguirá e destruirá também o Templo.

Terminada a profecia, ele respondeu à minha pergunta:

-As palavras que ouviste são as orações que aqui recitamos durante o dia. Quando chega a noite, falamos de exemplos opostos. Lembramos de Pigmalião, que se tornou traidor, ladrão e parricida por causa de seu apetite incontrolável pelo ouro. Lembramos do avarento Midas, da insensatez de Achan, de Safira, Heliodoro e Polinestro. Às vezes gritamos, às vezes falamos baixo. Eu não era o único que falava. Foi por acaso que não ouviste mais a voz de nenhuma outra alma.

Nós já havíamos partido de junto dele quando senti a montanha tremer. E então, por todos os lados surgiu um grito, tão alto que o mestre se aproximou e me disse:

- Não temas enquanto eu for teu guia.

- Glória a Deus nas alturas! - cantava o coro, enquanto a montanha tremia.

Como os pastores que ouviram esse canto pela primeira vez, ficamos imóveis até que o hino terminasse, quando também cessou o tremor. Depois, continuamos pelo nosso caminho santo, olhando as almas que jaziam no chão, de volta ao seu interminável pranto. Nunca me deu tanta vontade de saber o que ocorrera quanto naquela ocasião. Eu continuei a caminhar, mas com a mente confusa e pensativo.