Canto XXXIILago Cócito - Caína - Antenora - Espírito de BoccaChegamos ao fundo do Universo depois de descer um pouco mais, abaixo do ponto onde o gigante havia nos deixado. Eu ainda olhava admirado para o altíssimo muro, quando ouvi meu mestre falar: - Olha para baixo e toma cuidado para não pisar nas cabeças dos pobres sofredores. E então eu olhei em volta e vi sob os meus pés um lago gelado. O chão era tão duro e liso que parecia vidro. As almas estavam submersas no gelo com apenas o tronco e a cabeça de fora. Todos mantinham seus rostos voltados para baixo e batiam os queixos de frio. Depois de muito olhar para aquela multidão, vi aos meus pés, duas almas tão juntas que até seus cabelos tinham se entrelaçado. - Dizei-me vós que assim juntam os peitos - pedi - Dizei-me quem sois? Quando me ouviram os dois olharam para mim e começaram a chorar. Suas lágrimas logo congelaram, unindo mais firmemente um ao outro. Irritaram-se por causa disso e, tomados pela raiva, se agitaram e ficaram violentamente a bater cabeças. Antes que eu voltasse a interrogá-los, um outro espírito que perdera as duas orelhas congeladas pelo frio falou: - Por que tanto nos olhas? Esses aí são dois irmãos, filhos de Alberto, donos do vale onde flui o rio Bisenzo. Se procurares em toda a Caína não encontrarás almas mais merecedoras deste tormento que esses dois, nem aquele que teve seu peito e sombra perfurados por um só golpe da lança de Artur, nem Focaccia e nem este, cuja cabeça me encobre a visão. Ele é Sassol Mascheroni e se és toscano, deves saber quem ele foi. Eu fui Camicione dei Pazzi e espero aqui pela chegada de Carlino, meu parente, cuja pena fará a minha parecer bem menos grave.
Adiante vi mil faces, roxas de frio, que ainda hoje me fazem tremer ao lembrar. Continuamos, seguindo adiante na direção do centro. No caminho, não sei se por destino ou fortuna, ao passar distraído pelas cabeças, acabei atingindo uma delas fortemente no rosto com o meu pé. - Por que me atropelas? - gritou a alma em pranto. - Se não vens para acrescer à vingança de Montaperti, porque me molestas? Voltei-me ao mestre e solicitei que parássemos pois eu suspeitava que conhecia aquela alma desgraçada, que ainda gritava e nos insultava. Virgílio parou e eu fui até ela. - Quem és tu que assim insultas os outros? - perguntei. - E tu? Quem és tu que vais pela Antenora chutando os outros na cara como se fosses vivo? - perguntou-me a alma. - Vivo eu sou! - respondi -, e poderei servi-lo na busca de tua fama, se eu puder acrescentar teu nome às minhas notas. - Essa é a última coisa que eu desejaria! - respondeu - Vai-te embora daqui, vai! Não é assim que se consegue as coisas nesta lama. Com isto eu agarrei o desgraçado pelos cabelos e disse: - É bom que digas logo o teu nome, ou não te sobrará um fio de cabelo sequer! - Não! - o espírito respondeu - Eu não digo de jeito nenhum! Tu podes arrancar todos os meus cabelos, podes me pelar mil vezes se quiseres mas nunca, nunca ouvirás de mim o meu nome. Eu já tinha arrancado um feixe dos seus cabelos quando um outro gritou: - O que é que tu tens Bocca? Já não basta agüentar o ruído do teu queixo que bate sem parar? Por que não te calas? - Ora, ora - disse eu - não é preciso mais que fales, maldito traidor. Bem que eu desconfiei. Não te preocupes que eu levarei ao mundo a verdade sobre ti. - Vai embora - respondeu - e conta o que quiseres! Mas se saíres daqui, não deixes de falar também desse traidor aí que me delatou. Ele é Buoso de Duera que aqui paga pela prata dos franceses. Se te perguntarem quem mais havia neste poço, este que vês aí do teu lado é o Beccheria. E, se procurares um pouco, aqui também encontrarás Gianni de' Soldanieri junto com Ganellone e Tebaldello. Pouco depois que deixamos Bocca vi dois espíritos congelados juntos num mesmo fosso. Um deles mordia a nuca do outro ferozmente como se estivesse faminto. - Ó tu que mostras com cada mordida o ódio que sentes por essa cabeça que devoras, dize-me - pedi -, dize-me a razão pela qual ages assim. Se a tua razão for justa, sabendo quem sois vós e o pecado desse outro, prometo que no mundo acima retribuirei tua confiança, ou que minha língua fique seca para sempre. |