Canto XXIVVala dos ladrões - Espírito de Vanni FucciVirgílio, visivelmente irritado, nada falou até que chegamos diante das ruínas da ponte. Lá, imediatamente recuperou o seu semblante amável e otimista. Estudou por um instante as ruínas e abriu os braços para que eu me apoiasse nele para realizar a subida. E assim subimos, lentamente, ele me erguendo, e eu abrindo caminho. - Segura aquela pedra ali - ordenou o mestre -, mas tenha cuidado! Veja antes se ela te sustenta. Foi dura e difícil a escalada. Fosse o aclive mais íngreme ou mais longo eu certamente seria vencido pelo cansaço. Em Malebolge, cada poço é mais baixo que o anterior, portanto, a altura da subida deste lado era bem menor que a altura da nossa descida do lado oposto. Chegamos, enfim, à derradeira pedra da ruína. Eu estava tão exausto que assim que paramos, aproveitei a oportunidade para me sentar. O mestre não gostou: - Precisas deixar o cansaço de lado - disse ele -, pois estirado sobre a pluma ou a colcha, a fama não se alcança. E sem ela a vida passa sem deixar qualquer vestígio. Levanta! Vence o cansaço e anima-te! Mais longa escada nos aguarda. Com ânimo se vence qualquer batalha, quando o corpo pesado não atrapalha. Com esse incentivo prontamente me levantei, falante, para me mostrar valente e destemido. Mas minha fala foi interrompida por uma voz que surgia já do outro fosso. Não dava para entender o que a voz dizia. Nem no meio da ponte. Era uma voz apressada, irritada. Eu me inclinei para olhar mas não dava para ver coisa alguma. - Mestre - pedi - que tal atravessarmos até o outro lado e descermos o muro? Aqui onde estamos eu só ouço e nada entendo. Olho para baixo e nada vejo. - O que pedires eu faço sem reclamar - respondeu Virgílio. Descemos pela testa da ponte, pela oitava ribanceira que margeia a sétima calha, e lá vimos uma vasta multidão cercada de terríveis serpentes das mais diversas espécies. Só de pensar naqueles répteis terríveis meu sangue gela, pois eu nunca vira nada igual. No meio das serpentes corriam almas nuas, horrorizadas, com as mãos amarradas às costas por outras cobras que as apertavam, envolvendo seus corpos. Assistimos quando uma serpente perfurou um dos espíritos que estava próximo a nós. Ela atravessou seu colo se inseriu no seu busto. Imediatamente ele se incendiou e foi reduzido a um amontoado de cinzas. Mas aquelas cinzas espalhadas começaram a se mexer, e, lentamente, a se unir. Foram se juntando sozinhas até que haviam formado um homem. Ele se levantou como se acordasse de um sono profundo. Estava pasmo e suspirava aflito.
Meu guia então se aproximou e perguntou quem ele era. O condenado respondeu: - Eu chovi de Toscana faz pouco tempo neste abismo. Eu gostava mais da vida bestial que da vida humana, como a mula que fui. Sou Vanni Fucci, a besta. Pistóia era a minha toca. - Mestre - pedi -, pergunta a ele por que ele sofre nesta vala. Eu achava que ele estaria mergulhado no rio de sangue, como os outros violentos. O pecador ouviu e não dissimulou. Virou-se para mim com um rosto envergonhado, e disse: - Maior é a dor de teres me encontrado nesta miséria que a dor que senti quando perdi minha outra vida. Mas agora não posso negar-me em te responder. Eu estou aqui por que eu fui um ladrão. Fui eu quem roubou aquela sacristia onde outro levou a culpa. Mas para que não que fiques feliz por ter me encontrado aqui, se algum dia escapares, abre os ouvidos e escuta minha profecia: Pistóia perderá todos os seus Negros e Florença renovará gente e modos. De Valdimagra virá um raio envolvido por nuvens negras, trazendo uma tempestade amarga sobre o campo de Piceno, onde destruirá as nuvens claras, e todo Branco será então ferido. Esta previsão eu fiz para que sofras! |