Canto XXIIIVala dos hipócritas - Frades gaudentesCaminhávamos sem companhia: um na frente e o outro atrás. Durante a caminhada voltei a pensar naqueles demônios. Se por nossa causa eles sofreram dano, eles devem estar irados. Considerando os seus maus instintos, certamente não deixarão de vir atrás de nós. Esses pensamentos deixavam meus cabelos em pé e por causa do medo eu olhava para trás o tempo todo. - Mestre - disse -, se não tiveres como nos esconder, eu temo que os Malebranche poderão nos encontrar. Eu os sinto; eu os ouço como se estivessem vindo. - O teu temor agora juntou-se ao meu, e então vou procurar uma maneira de escaparmos. Se o declive a direita permitir nossa descida à próxima vala, teremos como escapar do ataque imaginado. Mal tinha terminado de expor o seu plano, eu os vi chegando com suas asas abertas, não muito longe, para nos pegar! Meu guia tomou-me no colo de repente e se jogou na rocha escarpada até escorregar na calha, rasteiro. Quando chegamos lá embaixo os diabos já nos observavam do alto do precipício. Eles nos amaldiçoavam, irritados. Descer, eles não podiam, pois eram proibidos de ultrapassar a quinta vala.
Deixamos os diabos para trás e caminhamos pela quinta vala. Vimos gente colorida, de capuz, caminhando lentamente e usando capas de ouro brilhante por fora, mas de pesado chumbo por dentro. Eles sofriam e choravam, cansados pelo peso intenso. - Meu guia - falei - enquanto caminhamos por esta vala, olha em volta e dize-me se vês alguém, cujos feitos ou nome me seja conhecido. - Mais devagar, tu que correis por este ar escuro! - gritou um espírito, que ouvira minha fala toscana - Talvez eu possa conseguir o que tu queres. Parei e vi duas almas que se aproximavam lentamente. Quando chegaram, me olharam e conversaram entre si: - Ele parece vivo o que mexe a garganta, e se os dois estão mortos, qual privilégio permite que andem despidos da pesada manta? - conversaram, e depois, a mim se dirigiram - Ó toscano que vieste visitar o colégio dos hipócritas, dize para nós quem tu és. - Eu nasci e cresci na grande cidade banhada pelo Arno e tenho o corpo que sempre possuí - respondi. - Mas quem sois vós, destilando lágrimas de dor que correm pelas vossas faces? - Frades gaudentes fomos - respondeu o primeiro -, e bolonheses. Eu sou Catalano e este é Loderingo. Tua terra nos deu um cargo que se costumava dar a um homem só, para manter a paz, e nós fizemos mal uso dele. Eu ia começar a responder aos frades quando me chamou a atenção um outro que sofria intensamente crucificado ao chão. O frade Catalano, que me observava, falou: - Este que tu vês crucificado disse aos fariseus que era mais oportuno sacrificar um homem que atormentar todo o povo. Nu, ele jaz no caminho, e como vês, sente o peso de cada um que passa sobre ele. Todos os outros do seu conselho estão aqui também. - Poderia nos dizer, se vos for permitido - perguntou Virgílio ao frade - se há, à direita, alguma passagem conhecida pela qual nós dois possamos sair, sem que seja necessário invocar os diabos para nos tirar desta vala? - Mais perto que imaginas - respondeu o frade - há uma ponte que une todos os anéis, mas nesta parte ela está destruída. Porém, embora a ponte esteja quebrada, é possível subir escalando suas ruínas. Ao ouvir a explicação do frade, Virgílio ficou parado, cabisbaixo. Depois disse, irritado: - Ele mentiu, aquele demônio desgraçado! Mentiu! Não havia outra ponte, era mentira! - Uma vez em Bolonha - interrompeu o frade -, fiquei sabendo dos vícios do diabo. Um deles é que ele é falso e é o pai da mentira. Virgílio se afastou em passos largos, mostrando irritação no seu rosto. E eu parti também atrás dele, seguindo o rastro de seus pés. |